Longe da Amadora
Onde estávamos nós enquanto o mundo se precipitava para onde estamos agora? (1)
Helena Rafael
28 de setembro de 2022
Naquele dia não estava perto da Amadora (2).
Em frente ao passeio onde aguardava a chegada da minha filha, seguia impiedosa uma via rápida sem passadeiras para disciplinar o frenesim do fim do dia.
A atravessá-la irrompeu subitamente um homem muito magro. Temi-lhe pela integridade física diante dos carros que buzinavam e que evitavam abrandar.
Aproximou-se de mim com o medo estampado no rosto perguntando-me, num português rudimentar, como podia ir a pé dali até à Amadora.
Perplexa com a distância que o separava do destino, sugeri-lhe que talvez fosse melhor deslocar-se de metro, cuja estação não era longe dali.
Voltou a fitar-me assustado. Disse-me que estava apenas há duas semanas em Lisboa e que ainda não sabia orientar-se na cidade.
“Estou perdido. Ainda não tenho passe. Só sei andar a pé, mas preciso de saber o caminho.”
Certifiquei-me de que estava seguro de que queria deslocar-se daquele modo e se tinha consciência de que iria demorar cerca de uma hora a chegar ao destino.
Enquanto isso a chuva caía-lhe nos ombros.
Aceitou hesitante que o abrigasse debaixo do meu chapéu. Confirmou que sim, que era isso mesmo que queria – ir a pé até à Amadora.
Pedi-lhe para esperar um pouco enquanto recolhia a minha filha à chegada da escola.
O ar assustado permanecia e a frase “estou perdido” tinha deixado em mim outras ressonâncias além das geográficas.
Fui ter com ele de novo e perguntei-lhe se tinha dinheiro para o transporte público.
Hesitou e disse-me que não tinha passe... Continuou a fitar-me com o olhar aterrorizado.
Disse-lhe então que não podia deixá-lo ir a pé até tão longe.
Dei-lhe o meu cartão de metro e dinheiro para o carregar. Indiquei-lhe a entrada da estação, a cor da linha que tinha de escolher e o nome da saída que mais lhe convinha.
Temi que não soubesse ler e que mesmo carregar o bilhete lhe fosse difícil. Aceitou tudo a medo.
Abriu, entretanto, o saco de plástico que trazia nas mãos e mostrou-me dois quilos de arroz que tinha ido buscar a uma instituição que ajudava recém-chegados ao país.
Não percebi se era de Angola ou da Guiné, mas adivinhei-lhe os ossos todos debaixo do blusão primaveril desajustado à estação do ano.
Despedimo-nos e perguntou-me a se a menina ao meu lado era minha filha. Disse-lhe que sim e desejou-nos sorte.
Fiquei parada até o ver entrar na estação não fosse perder-se novamente.
Apeteceu-me correr atrás dele para lhe ensinar a carregar o cartão, para lhe indicar a linha de metro certa e para lhe dar o meu número de telefone caso precisasse de alguma coisa…
Mas o medo, desta vez o meu, não me abandonou nem um segundo.
Fiz o caminho até ao meu bairro em silêncio e cheguei à casa confortável onde vivo a tremer de frio apesar do casaco quente.
As notícias metem-me constantemente pelos ouvidos dentro a irracionalidade da guerra, o drama dos refugiados, a cada vez mais profunda desigualdade social, o ressurgimento do populismo e os caminhos do mundo a seguirem por vielas sombrias. E isto tudo a acontecer ao mesmo tempo.
Os sacos de arroz não me saem da cabeça nem o olhar assustado do homem magro que atravessou aquela estrada como se nada tivesse a perder a não ser a vida.
Onde estávamos nós enquanto o mundo se precipitava para onde estamos agora?