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Espaço sideral e as mulheres nas calhas da calçada

Ninguém pode ficar para trás, mas é inevitável o receio que assalta cada uma de nós quando se avista o portão de um parque público ao cair da noite. Não é culpa nossa, nem deles. É da reiterada cultura que, por ócio ou vício, atormenta as mulheres.

Espaço sideral e as mulheres nas calhas da calçada
Joana Portugal
16 de junho de 2021

Recuemos à Antiguidade Clássica e percebamos que desde o início dos tempos as mulheres vivem em confronto com a ocupação do espaço público – seja o direito a passar numa determinada rua, o direito ao voto ou à plena liderança de um sítio. As mulheres são, continuamente, recolhidas para o privado - para o fechamento de si entre paredes privadas.

Mas como referia, recuemos e lembremos a afirmação de Pitágoras: “Uma mulher em público está sempre fora do seu lugar”. O dever das mulheres de atuação no privado era visto como único e palpável palco. Apregoava-se para elas o controlo e a captura infame porque, na génese, paira o perigo, a rebeldia e o inferno.

A história corre, tal como os tempos, mas em tantos séculos de conquistas e avanços pelos Direitos Humanos, que trouxe indubitáveis mudanças para as mulheres, permanece a imutável dualidade da vida. A vida da mulher no espaço doméstico e a vida do homem no espaço público.

Esta assimetria na ocupação do espaço familiar, económico, político e cívico tem na base a mesma premissa: a desigualdade de género, a atribuição de papéis e funções distintas a homens e mulheres. A tutela dos homens sobre as mulheres. Homens decisores e mulheres cuidadoras. Se por um lado a história desenhou, com bastante precisão, as fronteiras de atuação de mulheres e homens, clarificou, por outro lado, que para a história se continuar a cumprir de forma defensável, mulheres e homens têm de diluir essas fronteiras.

Ninguém pode ficar para trás, mas é inevitável o receio que assalta cada uma de nós quando se avista o portão de um parque público ao cair da noite. Não é culpa nossa, nem deles. É da reiterada cultura que, por ócio ou vício, atormenta as mulheres. É a memória do “não passes aqui sozinha, é perigoso”; a cultura do ódio e do medo – de um piropo, ao assédio e à violação – uma via rápida para o sentimento de outras, a fuga a algo pior, a fuga ao “a mim também me aconteceu”.

A mudança é por aqui. Atravessar o parque de lanterna em riste até que outros se juntem à caminhada. Desconstruir as amarras de poder e submissão que justificam também as violências.
É voltar à escola e explicar a crianças e educadores que a sustentabilidade das nossas vidas só é garantida sem a usurpação do poder sobre o outro, sem a assunção de que a violência é válida, qualquer que seja a forma da sua materialização, ou que mulheres e homens têm a sua vida vedada de um modo ou outro, porque sim, porque assim o dizem, porque já era assim e, portanto, tem de continuar a ser.

A informação, a desmistificação de estereótipos e a capacitação são a chave para a promoção de uma cultura e de uma sociedade que assegura a todas as crianças, jovens e adultos o respeito, os cuidados e as ferramentas para o seu livre desenvolvimento – um desafio que nos convoca a todos e a todas.

Falta fazer disto verdade, tão certa como o ciclo da vida ou das estações, tão necessária como a água para os peixes. Falta pregar este sermão – de que todas as pessoas são válidas, de que todos os dias podemos aprender, perdoar e ajudar o parque a tornar-se mais pisável para todas as vivências. Em segurança e com as mesmas oportunidades.

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