Direito universal a ser escutado
Penso no quanto deveria existir um (implícito) direito universal a que cada pessoa fosse escutada. As vezes que quisesse, a propósito e a despropósito, oficialmente e oficiosamente, em lugares conhecidos ou no segredo dos segredos, mas escutada.


João Pedro Chantre
28 de abril de 2021
Entrámos no mês de abril com um misto de emoções. Que liberdade, que esperança, que primavera teremos pela frente?
O telefone toca e de imediato uma declaração tranquilizadora: “trago-te uma boa notícia”. Do lado de cá, uma pergunta permanece: o que é, para mim, uma boa notícia?
Percorro os dias mais próximos. Ecoa, ainda, a voz de minha mãe dizendo que recebeu a primeira dose da vacina e que se sente bem. Nos dias da Páscoa uma comadre conta-me, entre o entusiasmo e o inconformismo, que se tinha filiado num partido político. A política partidária ainda é um lugar estranho e distante, embora o caminho para a democracia (só) se concretize entre a opinião e participação. Uma amiga diz-me, em voz baixa, que retirou, finalmente, o seu livro da gaveta, o reviu, entre os cuidados da família e as tarefas académicos e agora está na secretária de duas editoras, aguardando uma decisão. Bem mais perto, uma outra amiga concluiu o mestrado, com uma nota excelente, sobre o tema do acesso à cultura de pessoas com dificuldades intelectuais e desenvolvimentais. Realça que no imediato o quadro do seu estudo poderá não mudar muito, mas que se sente realizada, pois concluiu algo no qual acredita profundamente, e isso é uma fonte de alegria. Nos agradecimentos escreve que “a cultura é para todos, sendo apenas necessário pensar em formas que sejam confortáveis para cada um a fruir”.
Retenho, de cada um destes relatos, mais do que o momento, a história envolvente, aquela que transpõe a linha do tempo. Penso no quanto deveria existir um (implícito) direito universal a que cada pessoa fosse escutada. As vezes que quisesse, a propósito e a despropósito, oficialmente e oficiosamente, em lugares conhecidos ou no segredo dos segredos, mas escutada.
Em meados dos anos 1980 surge, no panorama dos meios de comunicação social portugueses, uma nova estação de rádio: a rádio TSF. No ar pressente-se uma energia nova. As vozes, como trovões, anunciam que por uma história "vamos ao fim da rua, vamos ao fim do mundo”. E a rádio tem esse potencial de, provavelmente, ser o meio de comunicação mais democrático. Bastam umas pilhas e pode ser ouvida em qualquer lado e transmitir a partir dos pontos mais remotos do universo.
Diante da repetida sentença de que a rádio iria acabar com a utilização em massa da internet, o que se verificou foi a sua total reinvenção. Jovem, atual e dinâmica, a rádio passou, em algumas estações, até a ter imagem, a produzir autênticos conteúdos televisivos, “exportando” alguns dos seus programas para as televisões convencionais.
Por uma história, a rádio reinventa-se a cada desafio, a empatia gerada na comunicação, marcada pela identidade da voz, estabelece com quem a escuta, uma relação de intimidade, criando fidelização. Num desejo de escuta, quase de reciprocidade, como que a dizer: ouve-se rádio e a rádio ouve o ouvinte. Concretiza-se, em tantos programas, onde o ouvinte intervém, diretamente, através da partilha da opinião, do levantar de questões, em suma, conta a sua história.
Escutamos atualmente uma diversidade de podcast, que entretanto migraram da rádio. Alguns enraizados na estação da rádio, outros independentes, de autor, temáticos, etc. São o reflexo da vitalidade da própria rádio.
Registe-se, entretanto, que corre no mundo das redes sociais uma nova app – ClubHouse – cujo único suporte é a voz. Não usa imagens, texto, ou outros códigos, apenas a voz. Pode dizer-se que será um novo espaço virtual para tertúlias, debates e partilhas várias. Mais uma vez é a rádio a inspirar os novos tempos da comunicação, e o desejo de ser escutada, de fazer-se ouvir, a história pessoal de cada um a manter-se presente.
Escuto vários escritores contando o seu processo de escrita; em comum partilham, na generalidade, a importância da história e das histórias, a necessidade de a preservar, por isso a escrevem. Recordo o escritor Afonso Cruz que numa recente comunicação, nas Correntes d’Escritas, refere, precisamente, a necessidade de não perder histórias, aquelas escutadas da sua avó que dizia, em jeito de refrão: "Deus esqueceu-se de mim".
Poderia juntar muitos mais enunciados de histórias com potencial para serem escutados numa mesa redonda, com espaço e tempo para divagar: permitam-me o desafio!
E que maio nos seja favorável!