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De férias com Coderch

As férias trazem consigo, idealmente, um tempo de paragem, de interrupção dos dias comuns. Num sítio próximo ou longínquo, num espaço conhecido ou até hoje ignorado, é importante encontrar tempo para olhar com mais atenção.

De férias com Coderch

João Valério

24 de agosto de 2022

As férias trazem consigo, idealmente, um tempo de paragem, de interrupção dos dias comuns. Num sítio próximo ou longínquo, num espaço conhecido ou até hoje ignorado, é importante encontrar tempo para olhar com mais atenção. São tantas as solicitações quotidianas que se torna difícil dar espaço e voz às indagações que querem também habitar a nossa consciência e memória. Cada contexto traz as suas perguntas, acumuladas, mas é fácil passar anos a navegar à superfície, deslizando sobre o que aparenta ser apenas um espelho de água plano. Falta mergulhar para descobrir o que existe mais abaixo.

Coderch, arquitecto catalão de meados do século passado, ter-se-á enchido de ver muito do que lhe corria em volta e, em 1961, escreve um pequeno texto à sua maneira: simples, claro, despretensioso. Fala dos problemas que vê na arquitectura – uma cultura da forma, do sinal exterior, e pouco do significado, do conteúdo – e lembra a importância da lentidão do crescimento urbano, da evolução e maturação orgânica, em oposição à velocidade que gera cenários de filme, não verdadeiras obras. Mas depois, a meio, lembra-nos algo ainda mais importante: “Ao dinheiro, ao sucesso, ao excesso de bens ou lucros, à leviandade, à pressa, à falta de vida espiritual ou de consciência é preciso contrapor: a dedicação, o trabalho, a boa vontade, o tempo, o pão de cada dia e, sobretudo, o amor, que é acolhimento e entrega, não posse e domínio. É a isso que temos de nos agarrar.” (1)

O Verão é um tempo privilegiado para interromper a sequência interminável de acontecimentos, para fazer uma pausa na nossa versão contemporânea de Sísifo – que, apesar do muito que façamos, nos impede de chegar ao fim das solicitações e responsabilidades que se nos apresentam. Esquecer o que cola as peças da vida vai desengonçando os fragmentos, deixa que a estrutura sólida se vá esboroando, como um betão mal cuidado e exposto às inclemências atmosféricas sem um mínimo de manutenção. Por isso, este é um tempo (é sempre, mas nas férias há menos desculpas) de relembrar o que interessa mesmo e de, com optimismo, regressar aos canteiros da nossa vida que precisam de ser cuidados.

“Infância
as crianças brincam na praia dos seus pensamentos
e banham-se no mar dos seus longos sonhos

a praia e o mar das crianças não têm fronteiras

e por isso todas as praias são iluminadas
e todos os mares têm manchas verdes

mas muitas vezes as crianças crescem
sem voltar à praia e sem voltar ao mar”
Fernando Sylvan (Abílio Motta-Ferreira)

Vamos voltar ao mar. Ou a outro sítio qualquer com um horizonte mais largo e a vontade de crescer de maneira completa.

(1) Josep Antoni Coderch (1913-1984), “No son genios lo que necesitamos ahora”. Domus (Nov. 1961)

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