Arrumar a casa interior
“A casa interior, tal como a casa que o corpo habita, é lugar de lugares, colecção de possibilidades. Como qualquer casa, se não for tratada com zelo e alguma dedicação, acabará desarrumada e impossível de habitar. Mas antes de a arrumarmos precisamos de a conhecer.”
João Valério
05 de maio de 2021
Vivemos rodeados de edifícios mas cada um de nós habita primeiro a sua própria casa interior, onde arruma ideias, experiências, a sua história. Naturalmente, esta casa interior também terá algo a ver com a casa exterior, arquitectónica. Procuro aqui um paralelo entre a casa que habitamos e a casa que somos. Levinas lembra que a casa “não consiste em ser o fim da actividade humana, mas em ser a sua condição e, nesse sentido, o seu começo” (E. Levinas, Totalidade e infinito). A casa interior, tal como a casa que o corpo habita, é lugar de lugares, colecção de possibilidades. Como qualquer casa, se não for tratada com zelo e alguma dedicação, acabará desarrumada e impossível de habitar. Mas antes de a arrumarmos precisamos de a conhecer. Percorremos a seguir uma casa imaginária, esperando que a visita nos deixe mais próximos da nossa própria casa interior.
I. Escritório
Para falar de arrumação, nada como começar pela desordem. E, diga-se desde logo, considero os espaços da desarrumação importantes – são sítio onde existe movimento e potencial para algo novo. Conta-se que quando sugeriram a Einstein que a desorganização da sua mesa de trabalho estaria relacionada com a sua “desarrumação” mental, este terá respondido de maneira bem-humorada com a pergunta “se uma secretária desorganizada é sinal de uma mente desorganizada, de que será sinal, então, uma secretária vazia?”. A desorganização é necessária e, de certo modo, inevitável. É impossível termos sempre tudo sob controlo e todas as ideias arrumadas na sua gaveta respectiva. Lá vai sendo preciso, de vez em quando, desarrumar pilhas de papéis, escrever anotações, trocar coisas de sítio, deitar fora o que se revelou claramente inútil ou contraproducente, fazer ligações novas entre partes anteriormente soltas. Isto é o que não acontece, por exemplo, no vácuo minimalista de uma casa como a bem conhecida Villa Arpel (Mon Oncle, Jacques Tati) – o minimalismo de purgar pensamentos incómodos, memórias que nos trazem outras memórias ou assuntos que exigem a nossa atenção apenas pode agudizar o vazio que nos receitam como salvação para a vida. Por isso, para haver pensamento, é necessária desordem, ainda que temporária, a caminho de algo mais organizado.
II. Cozinha
Passamos para o espaço ao lado. A cozinha é um laboratório, espaço de alquimia da matéria. Também na mente é necessário um espaço destes para seleccionar, misturar e transformar ingredientes, descobrir os condimentos certos, adicionar uma pitada de ervas novas e sabores frescos. Às vezes apostamos na certeza tranquilizadora de cozinhados mais simples, outras vezes experimentamos pratos exóticos que nunca imaginámos que poderiam funcionar. Embora raramente (esperamos,) acontece ainda que o cozinhado esturra e é necessário repor o tacho nas condições originais e repetir a tentativa, ora com mais atenção, ora com passos diferentes. Importante é mesmo contar com algum espaço para o erro. Embora haja quem prefira seguir o livro de receitas e quem se aventure por caminhos menos mapeados, nada há como experimentar para ver o que sai. Não é menos certo, no entanto, que mesmo seguindo rigorosamente a receita podemos ser surpreendidos com um cozinhado algo diferente do esperado. A cozinha da mente é um óptimo local para misturar ingredientes – com cuidado para não queimar, mas aproveitando as possibilidades de reinvenção que ela nos abre.
III. Sala
Depois da cozinha, passemos para a mesa ou, quem sabe, para junto da lareira. É o lugar de esbater a fronteira e dar lugar ao cruzamento de pensamentos, abrir vãos na parede para iluminar e ser iluminado com quem nos é próximo, no espaço da intimidade. Se a nossa sala for um bunker com espessas paredes de betão, todas as riquezas aí guardadas não serão mais do que um arquivo estático, congelado no tempo.
Precisamos, por isso, de abrir janelas para deixar entrar a luz, talvez até portas para convidar a usar a casa e movimentar o pó assente; o espaço da lareira e da mesa, pertencente à sala por excelência, é local de diálogo e crescimento.
IV. Biblioteca
Falando de arquivos, avancemos agora pelo corredor até à divisão do fundo, a biblioteca, forrada de estantes de livros e armários de arquivo. É aí que nos sentamos para retomar o pensamento deixado a meio ou a leitura que nos leva para destinos longínquos, para rever as folhas que escrevemos ou rabiscámos mas de que já não nos recordávamos ou até as fotografias que nos fazem rever memórias.
Também no nosso interior temos espaços de ordem, de rigor, de estantes por ordem alfabética e temática; espaços de arquivo, recordação; espaços que, afinal de contas, são também fonte de novidade construída sobre o passado. É na biblioteca interior que vamos procurar a experiência e memórias necessárias para viver melhor cada dia; conforme a biblioteca vai crescendo, agrupando metodicamente os diferentes volumes e edições de pensamentos que vão chegando, também nós vamos vendo um pouco mais longe e de maneira mais abrangente.
V. Jardim
Saímos agora para o jardim, pela porta lateral que se esconde no meio dos arbustos. O jardim é exterior mas não deixa de ser parte desta casa onde caminhamos. Ao lado da gravilha que vai resvalando sob os pés estão as ervas, os pequenos arbustos, as pedras gastas, a lenha que se vai decompondo deixada à chuva e ao sol, os rebentos que renascem a cada Primavera; o jardim, como o nosso interior, é espaço de passagem do tempo – tempos lentos, contínuos, que se vão metamorfoseando pelas estações do ano, atravessados pontualmente por momentos que assinalam tempos diferentes. As estações do ano passam e deixam-nos adivinhar esse correr de tempo nas mudanças que provocam na paisagem, tal como dentro de nós vamos amadurecendo ideias, deixando o tempo erodir, moldar, renascer. Os momentos marcantes são pontos notáveis neste tecido, oferecendo lugares de ancoragem da memória e, por vezes, pontos de transformação do pensamento e da vida.
O jardim é ainda espaço de lazer, de não-fazer. Para fechar a volta por alguns destes espaços da casa imaginária onde andámos, terminamos neste lugar onde acontece o silêncio – isto porque parar também é importante, em especial num tempo em que a paragem é tida como improdutiva quando, de facto, é o que nos alimenta para o caminho de todos os dias.
Fica a proposta de, através da casa que habitamos, reconhecermos a nossa casa interior para revisitarmos os lugares menos conhecidos, as divisões menos arrumadas e os espaços a precisar de algum trabalho. É sempre tempo favorável para a transformação, para o reencontro, para a redescoberta, guiados por um Deus que nos conhece bem e que é, ao mesmo tempo, casa acolhedora e peregrino que procura o nosso acolhimento na casa que construímos para Ele.