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100 ano de Joseph Beuys (1921-1986) - o mito

Contudo, um artista que escolheu encarnar a missão de curandeiro, de profeta, de professor, de psicopompo e de lutar pela cura através da arte, carrega consigo um múnus incomensurável. É por isso que, muitas vezes, os heróis são mal compreendidos: saem da floresta com ouro nas mãos e este transforma-se em cinzas.

100 ano de Joseph Beuys (1921-1986) - o mito

Carolina Serrano

02 de junho de 2021

Joseph Beuys (Krefeld, Alemanha, 1921-1986) tornou-se aos quinze anos membro da Juventude Hitleriana e, mais tarde, ingressou na Luftwaffe, um dos ramos aéreos do império alemão Nazi.
Conhecemo-lo enquanto o artista que teceu para si mesmo um mito pessoal de renascimento e que à volta desse mito criou toda a sua arte. Pois, só a arte poderia curar o povo alemão das suas violações, e só a arte poderia redimir o artista do ‘pecado alemão’, ainda mais inflamado dentro de si por, com ele, ter pactuado.

Apesar das feridas profundas, e da sua memória enquanto membro da ‘Tätergeneration’[Geração dos perpetradores], foi precisamente através da guerra que Joseph Beuys, o artista, nasceu. Foi lá que surgiu para a Vida.

O despontar, segundo ele, foi em 1943: “O meu Junker 87 foi atingido por um ‘fogo’ anti-aéreo russo e eu despenhei-me durante uma tempestade de neve na Crimeia, na terra-de-ninguém, entre a Alemanha e a Rússia francesa. Fui encontrado nos destroços por um clã de nómadas tártaros. Eles cobriram-me o corpo com gordura, para o ajudar a regenerar o calor, e embrulharam-me em feltro, como insulador, para conservar esse calor” (1). O despenhamento fraturou-lhe o crânio, abrasou-lhe o couro cabeludo, partiu-lhe vários ossos, e espalhou vários estilhaços pelo seu corpo. No entanto, o soldado sobreviveu. Segundo a história, não só preservou a vida, como foi curado e totalmente reabilitado devido aos cuidados primitivos de um povo que revelou ser complacente e generoso, um povo cuja manifestação se revelou o oposto da ideologia nacional-socialista, cujo emblema Beuys trazia ao peito. [Apesar da história que o próprio conta, sabe-se que Joseph Beuys recuperou deste acidente num hospital militar, e não através dos cuidados deste povo nómada que já não habitava a zona há bastante tempo. Depois de recuperado do acidente, já no final da Guerra, Beuys integrou uma unidade de paraquedistas da Holanda. Mais tarde, após o armistício, é feito prisioneiro num campo de internamento do exército britânico e libertado dois meses depois].

A história do seu acidente, mitologicamente tecida por si mesmo, não é diferente de muitos outros mitos que animam a nossa sociedade e vivificaram aquelas que existiram antes da nossa. Essas informações antigas edificaram civilizações e religiões aos longo dos milénios. Apesar das diferentes façanhas, apesar dos diferentes heróis [ou anti-heróis], os mitos pretendem encaminhar-nos para uma consciência mais profunda do facto de estarmos vivos, guiar-nos através das dificuldades e dos traumas, da intolerância com a nossa própria finitude e da ânsia pela eternidade, da nossa culpa e da nossa inocência, desde o nascimento até à morte. O mito tende, além disso, a atenuar a ferida que o ser humano carrega neste mundo.

A verdade factual do seu acidente não tem aqui relevância, só um mito poderoso poderia dar conta de tal milagre: um homem que caiu dos céus, caminhou no limbo da morte, que foi trazido à vida, lavado dos seus pecados e sofrimentos na guerra, que foi curado por um povo sem maldade, e que renasceu no mundo enquanto Artista. Tal como Prometeu, que roubou o fogo dos deuses para o levar aos homens; Jasão que enfrentou o dragão para conquistar o Velo de Ouro, ou como os cavaleiros da Távola Redonda ao procurar o Santo Graal, Beuys é a personagem principal do seu próprio mito, aquele que experienciou um nível supranormal da vida espiritual humana através do trauma e da cura, e que, regressado da ‘morte’ quis comunicá-lo aos outros homens, dizer-lhes que é possível.

Normalmente a ação heroica pressupõe uma viagem – uma partida, uma realização e um regresso. Moisés sobe ao topo da montanha, encontra Jeová, e regressa com as leis para formar uma sociedade. Jesus vai para o deserto sofrer as três tentações e, intocado, volta para escolher os seus discípulos para, com eles, espalhar a Sua mensagem a todos os homens. A jornada de Beuys começa quando parte enquanto soldado, povoa a orla dos mortos e regressa à vida enquanto ser transformado - um Artista apossado de um tal segredo.

Depois de ter ingressado na Kunstakademie de Düsseldorf em 1947, foi através do motivo religioso do corpo ferido de Cristo, o redentor, que Beuys revisitou uma iconografia da ferida, revelando o seu próprio trauma. Cristo é o expoente do sofrimento e da cura, é aquele que passa pela morte, pelo sepultamento, e pela ressurreição – a verdadeira jornada. Uma figura com a qual Beuys se quer identificar, pois qualquer pessoa que encarnar a verdadeira Vida, ou seja, aquele que renascer espiritualmente, embarca na Sua jornada. E o Cristo que está em nós não morre: ele sobrevive à morte, e ressuscita.

Contudo, quando mais tarde lhe perguntaram qual das suas obras contribuiria sobretudo para a cristandade, Joseph Beuys afirma: “Erweiterter Kunstbegliff”, ou seja, o “conceito expandido da arte”. O artista percebe que tem que encontrar uma linguagem própria do seu tempo para traduzir aquilo que é intemporal: no seu caso, a mensagem cristã sem, contudo, dela se cativar ou sem, através dela, se conter. Neste contexto, após abandonar a iconografia tradicional cristã e os seus motivos, Beuys passa a ser ele próprio a Palavra, encarnando-a. O discurso e a ação passam a ser fundamentais na sua obra, e determinantes para a sua noção de escultura social. O artista acreditava que a arte poderia transformar as consciências e a sociedade, alicerçando-a em ideais de liberdade individual, criatividade e responsabilidade. Entendia a arte como uma força mágica e transformadora. Um dos seus princípios básicos assentava na ideia da arte enquanto campo de energia, sendo que os seus objetos artísticos seriam catalisadores dessa mesma energia.

Joseph Beuys queria que pensássemos a sociedade como uma grande escultura social, e em nós enquanto seres dotados de criatividade e poder para a modelar. Pensarmos em nós enquanto seres de jornada. Já no nascimento, tivemos de passar por uma tremenda transformação: ao abandonar a nossa forma embrionária, salvaguardada pelo líquido amniótico dentro da ‘caverna’ – o interior da mãe – fomos surpreendidos pela luz, o cheiro e o som, e, de repente, obrigados à autossubsistência. Começando de forma algo traumática, esta é a forma primária do “herói”. Como Santo Agostinho o disse, “[a criança] saudando a luz, não entre sorrisos, mas entre lágrimas, profetiza, por assim dizer, a abundância de males que a aguardam. É profeta da própria miséria. Ainda não fala, e já profetiza” (2).

Contudo, um artista que escolheu encarnar a missão de curandeiro, de profeta, de professor, de psicopompo e de lutar pela ‘cura’ através da arte, carrega consigo um múnus incomensurável. É por isso que, muitas vezes, os heróis são mal compreendidos: saem da floresta com ouro nas mãos e este transforma-se em cinzas.

(1) BEUYS, Joseph (transcrito e traduzido) in Who is Joseph Beuys? (1:00-1:40 min.), nationalgaleries, 12/08/2016 [Em linha] Disponível em: WWW: <https://www.youtube.com/watch?v=e7pIGGcIoLk&index=1&list=PLGrAK2qwCZK9gjW7PETGqQ_ZYZzR02dm> [consulta 18.05.2021].

(2) AGOSTINHO, Santo – Cem páginas. Seleção e Prefácio de P. Moreira das Neves. Lisboa: Livraria Bertrand, 1945, pp. 95-96.

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