Há pressa no ar? Os crentes e a crise ecológica
Estabelecidas as metas e delineados os eixos de intervenção das diversas religiões na esfera da sua liderança à escala universal, cumpre agora às instituições religiosas a nível local assumir como seus estes critérios globais, tornando-os parâmetros operativos da sua ação comunitária e princípios determinantes das prioridades e objetivos pastorais a que se atribuem.
Pedro J. Silva Rei
27 de outubro de 2021
«Estou aqui para soar o alarme: o mundo precisa de acordar. Estamos à beira de um abismo – movendo-nos na direção errada. O nosso mundo nunca foi tão ameaçado. Ou tão dividido. Enfrentamos a maior escalada de crises das nossas vidas. […]. Temos a oportunidade e a obrigação de agir.»(1) É ao som do grito de alerta do Secretário-Geral das Nações Unidas, António Guterres, lançado na abertura da 76.ª sessão da Assembleia Geral da ONU, que os dirigentes mundiais se reunirão em Glasgow, na Escócia, para a 26.ª Conferência das Nações Unidas sobre Mudança Climática, a ocorrer de 31 de outubro a 12 de novembro. Organizada pela Grã-Bretanha e pela Itália, a realização da COP 26 tem por meta procurar consensos internacionais em ordem a acelerar a ação climática para o cumprimento dos objetivos estipulados no Acordo de Paris, assinado em 2015.
Com os olhos postos em Glasgow, também os líderes religiosos se reuniram a 4 de outubro último, em Roma, para lançarem um Apelo conjunto aos líderes internacionais, subescrevendo o documento Fé e Ciência: Um apelo para a COP26, no qual reivindicam: «Precisamos de uma estrutura de esperança e coragem. […]. Agora é o momento de uma ação urgente, radical e responsável. A transformação da situação atual exige que a comunidade internacional atue com maior ambição e justiça, em todos os aspetos das suas políticas e estratégias. […]. As gerações futuras nunca nos perdoarão se desperdiçarmos esta oportunidade preciosa. Herdámos um jardim: não devemos deixar um deserto para os nossos filhos.» (2)
Além de apelar às instâncias governamentais para aprofundarem a colaboração internacional em ordem à transição energética, à adoção de práticas sustentáveis no uso da terra, à erradicação da fome e à promoção de padrões de consumo, produção e estilos de vida sustentáveis, os líderes religiosos procuraram entre si firmar deveres partilhados face ao destino universal da Casa Comum, definindo um conjunto de orientações estratégicas em matéria ecológica a levar por diante junto das comunidades religiosas das quais são os primeiros responsáveis. Entre estas destaquemos as seguintes: o aprofundamento dos esforços para provocar uma mudança no modo como «nos relacionamos com a Terra e com as outras pessoas»; incentivar instituições educativas e culturais de cada uma das religiões «a fortalecer e priorizar a educação ecológica integral»; envolver as congregações e instituições para construir «comunidades sustentáveis, resilientes e justas»; encorajar as diferentes comunidades religiosas a adotar estilos de vida sustentáveis; alinhar os investimentos financeiros das instituições religiosas «com padrões de responsabilidade ambiental e social».
Estabelecidas as metas e delineados os eixos de intervenção das diversas religiões na esfera da sua liderança à escala universal, cumpre agora às instituições religiosas a nível local assumir como seus estes critérios globais, tornando-os parâmetros operativos da sua ação comunitária e princípios determinantes das prioridades e objetivos pastorais a que se atribuem. Só assim este Apelo histórico ganhará pertinência e será digno de crédito, sem redundar num protocolo inter-religioso performativo, vazio de futuro e sem tradução concreta no real da vida das comunidades e dos crentes.
No caso português, no campo de ação das Igrejas Cristãs há uma janela de oportunidade que se abre e chama à colação cada uma das instituições envolvidas: o Memorando Eco Igrejas Portugal, concertado entre a Fundação A Rocha, a Aliança Evangélica Portuguesa, o Conselho Português de Igrejas Cristãs, a Rede Cuidar da Casa Comum e a Conferência Episcopal Portuguesa. O seu objetivo visa a promoção da ética da sustentabilidade e a aplicação dos indicadores de diagnóstico, educação e gestão ambiental nas diferentes comunidades cristãs, para uma melhoria contínua da sustentabilidade ecológica de cada uma delas. Tal projeto será uma oportunidade para os cristãos em Portugal assumirem a sua quota-parte no combate à crise ecológica, assim haja interesse por parte das comunidades, instituições, movimentos e agentes pastorais, e não se quede o cristianismo num quadro de antanho desligado dos principais desafios da sociedade e do mundo do nosso tempo, renunciando à sua capacidade de ser fermento na massa.
Considerando as prioridades pastorais já definidas, ocorre perguntar se face à urgência de uma crise ambiental anunciada todos vão ouvir a nossa voz? Há, ou não, pressa no ar? Isto porque, à margem dos vínculos institucionais, das práticas rituais, dos eventos pastorais, dos articulados jurídico-canónicos, das resoluções dogmáticas, a credibilidade dos crentes nas sociedades contemporâneas decorre do modo como estes, individual e comunitariamente considerados, têm a capacidade de comprometer o seu testemunho de fé com o processo de transformação do mundo que habitam e do qual são, em simultâneo, zeladores e herdeiros. Se, na verdade, a fé e a espiritualidade de diferentes tradições religiosas instruem o dever de cuidar da família humana e do meio ambiente, como, aliás, admitem os seus líderes, somos forçados a reconhecer que aqueles que se identificam como herdeiros de um jardim não se podem transformar em locatários passivos de um deserto furtando-se à responsabilidade do cuidado que lhes cumpre exercer como mandato. Na justa medida em que o cuidado é também um apelo vocacional que é dirigido aos crentes: «uma vocação ao respeito», diz Francisco, «respeito pela criação, respeito pelo próximo, respeito por si mesmo e respeito perante o Criador.» (3)
Imersos num contexto de crise ecológica, torna-se urgente que os crentes assumam a sua obrigação implicada e passem das palavras aos atos, posto que, como reconhece o papa de forma contundente, «não basta repetir declarações de princípio que nos fazem sentir bem porque, entre outras coisas, também estamos interessados no meio ambiente. A complexidade da crise ecológica exige responsabilidade, concretude e competência». (4) Todavia, como crentes, o seu agir comprometido no tempo não pode deixar de ser sustentado pelo mistério subversivo da Esperança que os habita e da qual são permanentemente chamados a dar a razão – «essa menina de nada» capaz de espantar o próprio Deus. (5) Porque a nossa sociedade, como escreveu Manuela Silva, «carece de olhares que regenerem novas energias, olhares capazes de transformar as situações mais sombrias e de abrir as portas à esperança de um mundo mais justo, fraterno e solidário. Se quisermos servir a sociedade precisamos de cultivar esse outro modo de olhar, um olhar que transfigure e recrie.» (6)
Os crentes de olhos abertos são aqueles que, não resignados diante do desastre, têm a capacidade de repetir como Sophia: «Não aceitamos a fatalidade do mal». (7) Portanto, na medida em que assumirem o seu compromisso com a sustentabilidade da Terra e o cuidado dos pobres, os crentes serão também convocados a testemunhar o seu protagonismo profético como conspiradores de Esperança diante do «pecado organizado».